Contexto Esta semana divulguei um Workshop que vou realizar proximamente dedicado a mulheres cis, trans e pessoas designadas mulheres à nascença. O simples acto de ser inclusiva e de usar linguagem apropriada trouxe-me algum ódiozinho gratuito e despropositado. Ser quem eu sou, alinhar as minhas acções às minhas palavras e aos meus ideais, foi chocante para algumas pessoas. Hoje, cansada de responder a cada argumento particularmente, decidi escrever um texto com uma resposta mais abrangente. Feminino O que aquelas mulheres nos comentários do meu post defendem não é, como elas dizem, o “sagrado feminino”. Se a sua real preocupação fosse o Sagrado Feminino, estas mulheres saberiam reconhecê-lo e honrá-lo em cada pessoa, independentemente de essa pessoa ser mulher ou homem, cis ou trans, gay ou hétero, branca ou racializada, com ou sem deficiência. O feminino não é nem nunca foi exclusivo das mulheres. É um arquétipo, uma energia, uma abstracção que é manifestada por qualquer pessoa, de formas múltiplas e diversas. Entender o feminino como uma característica exclusiva das mulheres é limitador, opressor e, acima de tudo, é não saber do que se fala. Ao invocarem a natureza como argumento para esta lógica binária e redutora, apenas demonstram o seu desprezo pela ciência e pela própria natureza, que é fascinantemente complexa e diversa. Feminismo O feminismo, que também está sempre presente nos seus discursos, advoga direitos iguais para mulheres e homens e proclama que a liberdade de umas tem que ser a liberdade de todas. Apesar de, no início do movimento, a interseccionalidade ter sido desconsiderada e até rejeitada, esta noção tem vindo a ganhar cada vez mais espaço dentro do movimento feminista e reflecte a diversidade que, apesar do longo caminho que ainda temos pela frente, está cada vez mais visível e mais representada na vida pública. Mas não é esta a bandeira destas mulheres. Femismo Aquilo que eu vejo ser defendido naqueles comentários, e que vejo no mundo fora da internet em muitos dos grupos de mulheres da “espiritualidadezinha new age”, não é o feminismo, mas uma espécie de femismo, a crença de que as mulheres são superiores aos homens e que defende um regime matriarcal. Ou seja, um espelho do machismo: apenas mais uma forma de oprimir minorias. Aqui, como no patriarcado existe assimetria e exclusão, porque ficam de fora todas as pessoas não-binárias. Aqui, como no patriarcado, faltam o equilíbrio, a equidade, a diversidade e a liberdade. Raiva Quando estas mulheres falam da opressão do patriarcado, nunca falam de opressão colectiva, mas sim da sua opressão individual. Porque a sua luta não é nem nunca foi uma luta de todas. Não é nem nunca foi uma luta pela liberdade e pelos direitos humanos. É tão simplesmente a manifestação de uma raiva alimentada por uma noção de abuso ou injustiça pessoal. Acredito que, enquanto emoção, esta raiva é válida, mas, ao ser manifestada sem uma consciência social e colectiva, torna-se apenas uma réplica da opressão de que elas próprias se dizem vítimas — a vítima torna-se o abusador. Privilégio A liberdade que almejam não é um valor colectivo, mas apenas a ambição egoísta de um privilégio pessoal. Querem o poder que invejam nos homens, mantendo o seu privilégio branco e heteronormativo, mas não a verdadeira liberdade, que emancipa todas as pessoas e promove a sua autonomia e autodeterminação. Esta ideia de privilégio branco e heteronormativo perpassa todo discurso destas mulheres e é evidente nos seus grupos, onde raramente há espaço para a interseccionalidade. Neste contexto exclusivo e segregador, a vitimização passa a ser usada como arma de opressão de outras minorias, como se fosse necessário eliminar todas as pessoas que com elas “competem” pelo papel de vítima. Medo Gloria Steinem disse numa entrevista que “a polarização de papéis de género era um indicador de violência em sociedades tribais”. Acredito que esta atitude de vitimização vem de um lugar de medo e de escassez, um lugar onde é necessário competir pelo poder e por um lugar no topo da hierarquia social, porque não se acredita que haja espaço suficiente para todas as pessoas. A violência passiva implícita na manipulação da condição de vítima é uma estratégia típica das mulheres brancas (das quais eu não me excluo) e conhecida nos meios racializados como “white woman tears”. Diversidade Todos estes argumentos, vitimização, libertação da mulher do patriarcardo, feminismo, a natureza (ou biologia) e o “sagrado feminino”, são usados de forma perversa e esvaziados do seu verdadeiro sentido. Estas mulheres usam-nos levianamente e com um entendimento binário e, por isso, limitado da vida. O dois é apenas um conceito que vem depois da unidade e antes da multiplicidade. A vida e as pessoas não se esgotam nessa superficialidade. Pelo contrário, a vida e as pessoas são muito mais maravilhosamente complexas e diversas. Nota: Comentários que promovam a discriminação e opressão de minorias vulneráveis serão apagados. Não tenho mais energia para gerir abusos.
7 Comentários
De respeito, sim. Homens e mulheres, todos temos direito a respeito igual. Ah e tal… isso é óbvio! Não, não é. Apesar de tantos direitos já conquistados para as mulheres e pelas mulheres, o respeito está longe de ser uma realidade. Muitas mulheres ainda entendem que não vale a pena denunciar situações de abuso porque acreditam que não vão ser respeitadas. Elas sabem que ao fazê-lo vão ser postas em causa e vão prolongar o mesmo abuso que queriam denunciar e do qual gostariam de se proteger. Seja num círculo mais privado, seja ao nível das instituições privadas e governamentais, há ainda um silenciamento e uma relativização das queixas das mulheres e da violência sobre as mulheres. Por sua vez, isto permite que uma cultura de inferiorização, de violentação e de humilhação, nas suas várias dimensões, se perpetue. Mas o que fazer para cultivar o respeito e contrariar o silêncio que alimenta a permissibilidade do desrespeito e do abuso sobre as mulheres? Aqui ficam algumas ideias para os homens, para as mulheres, para as autoridades e para a sociedade em geral, com o propósito de incentivar a comunicação de forma a que as mulheres se sintam seguras em dar voz às suas queixas quando são vítimas de algum tipo de assédio, abuso ou violência. Escutar É realmente importante saber ouvir quando alguém partilha uma situação em que se sentiu vulnerável e desprotegida ou injustiçada. Podemos fazer perguntas para perceber como a pessoa se sentiu, sem ser invasivos e pondo o foco na percepção da pessoa. Saber escutar é também validar as emoções do outro. Mesmo que eu não reaja da mesma maneira numa situação semelhante, eu posso entender as suas reacções e a sua sensibilidade. Não julgar Ninguém pede para ser desrespeitada ou abusada. Ninguém. Se partimos do princípio que a culpa está do lado de quem foi assediada ou violentada, não só estamos a proteger o agressor e a permitir outras agressões, como estamos a pôr em causa direitos fundamentais de todos, nomeadamente o direito à segurança e o direito à integridade física e moral. E não, a roupa que alguém tem vestida não tem nada a ver com o respeito que lhe é devido! Não relativizar ou minimizar Comentários como “deves ter entendido mal” ou “fulano estava só a tentar seduzir” ou ainda “deves andar por lugares duvidosos” põem em causa a capacidade de discernimento e de julgamento de quem já se sente invadida. A confusão, a existir, está do lado de quem não entende regras sociais básicas e tem dificuldade em reconhecer os limites pessoais dos outros. “If it feels wrong, it is wrong.” Se te sentes mal, está mal. Pôr-se em causa Algumas vezes, os homens, e também mulheres, têm tendência a inconscientemente proteger o abusador simplesmente porque se identificam com a posição confortável de não serem postos em causa. Este é um privilégio que a sociedade, de forma implícita, ainda dá aos homens, e, às vezes, também às mulheres que “seguem as regras”, e que pode ser imperceptível para quem dele usufrui. Então ponham-se em causa, perguntem-se se em alguma situação já abusaram da confiança que alguém vos deu, se já foram insistentes com alguém para além do aceitável. Sermos capazes de reconhecer os nossos erros não faz de nós pessoas más, mas é sinal de humildade e de crescimento. Não querer ouvir a história do outro para não perder uma posição que nos protege de lidar com o sofrimento, mesmo que alheio, dificulta a empatia e impede a mudança de mentalidades. Apoiar Podemos também ainda apoiar perguntando simplesmente “Como posso ajudar? O que precisas de mim?” Pode ser como companhia para ir ao médico, pode ser como testemunha abonatória, pode ser partilhando uma história semelhante para que a pessoa não se sinta sozinha, pode ser dando o contacto de um terapeuta, pode ser oferecendo apoio moral para fazer uma queixa oficial, se for caso disso. Pode ser de muitas formas e cada um, em cada momento vai saber encontrar a mais correcta. Apoiar é não silenciar uma mulher porque “se calhar não foi bem assim” ou “talvez tenhas entendido mal”. Apoiar é ouvir e não permitir que um pedido de ajuda, uma queixa ou uma denúncia caiam no silêncio. Apoiar é reconhecer a verdade do outro, a dor do outro e respeitar a sua voz. Em resumo… na dúvida, acreditem na palavra da mulher que está à vossa frente. Respeitem o que ela tem para dizer. Respeitem a sua vulnerabilidade, respeitem a sua zanga, respeitem a sua voz. Respeitem-na. Há uns dias li um texto de uma amiga que falava sobre escolhas e sobre a inevitabilidade de fazermos aquilo que nos é “preciso, necessário e vital.” Lembrei-me que, há uns meses, quando me perguntaram porque é que eu me tornei astróloga, eu respondi “não tive escolha”, foi um caminho que, por muito que eu tivesse resistido, se mostrou inevitável. No desenvolvimento pessoal é consensual que sermos quem verdadeiramente somos e expressar o nosso eu mais genuíno é o caminho para a felicidade. No entanto, nem sempre essa manifestação de autenticidade é aceite pela nossa sociedade, especialmente se tocar num dos grandes tabus, a sexualidade e as questões de género. Sexualidade, papel social de género, identidade de género e sexo biológico não acabam na definição binária masculino/ feminino. A vida e os nossos comportamentos não são assim tão a preto e branco, tão lineares. Não é linear a sexualidade, apesar de, cada vez mais, a sociedade se abrir à aceitação de comportamentos que se afastam da “norma”, como a homossexualidade, a bissexualidade e todo o arco-íris de possibilidades que existe na expressão saudável e ecológica do nosso lado sexual. Não é linear o papel social de género – durante o século passado o movimento feminista conquistou para as mulheres muito espaço que antes a sociedade reservava aos homens. Acredito também que, aos poucos, os homens vão começando a “invadir” o território feminino, assumindo tarefas domésticas e profissões tradicionalmente reservadas às mulheres. Não é linear a identidade de género – Laerte, cartunista brasileira, Eddie Izzard, actor e humorista de stand-up, ou ainda Chaz Bono, filho de Cher e Sonny Bono, são exemplos de diferentes vivências da transgeneridade. Não é linear o sexo biológico – o número de bebés que nascem com ambiguidade sexual é cerca de um em cada cem, bem maior do que a atitude da sociedade em relação a esta questão nos faria supor. Nada disto é linear, mas vivemos ainda num sistema social que insiste em organizar-se segundo um padrão polarizado, que dá liberdade de expressão aos comportamentos que consegue rotular e mantém à margem tudo o que seja diferente, desigual e dissonante. Em Astrologia, Urano rege tudo o que foge à norma, tudo o que fica fora da caixa, fora das classificações, os mutantes e os rebeldes, os revolucionários e os radicais e, desde 2011 e até 2019, este planeta está a passar pelo signo de Carneiro, o signo da afirmação e da individualidade. Este trânsito facilita e promove a expressão da verdade individual, a libertação corajosa e assertiva dos nossos medos e bloqueios, não apenas a nível pessoal, saindo do armário e confrontando família, amigos ou colegas, mas especialmente enquanto colectivo, abrindo-nos para comportamentos e formas de estar mais abrangentes e coloridos do que uma visão a preto e branco da vida. Acredito que os tempos que correm estão a trazer grandes avanços e transformações sociais a este nível. Dois exemplos rápidos: dos dezasseis países que reconhecem legalmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, oito fizeram-no entre 2010 e o ano passado; a Argentina reconhece legalmente um terceiro género desde 2012 e a Alemanha e a Índia desde 2013. Espero que os próximos anos tragam ainda mais progresso nestas áreas e que comportamentos hoje considerados chocantes e aberrantes se tornem tão normais e aceitáveis como a heterossexualidade e a família “tradicional” – entre muitas aspas, porque sempre existiram muito mais modelos de família do que apenas aquele que entendemos como tradição. A propósito de como se começou a vestir de forma feminina, Laerte diz “o meu movimento inicial é uma necessidade, um desejo, uma vontade que se torna cada dia mais evidente”. Eu não escolhi ser astróloga e a minha amiga não escolheu ser fotógrafa, mas temos a liberdade de manifestar aquilo que somos, através da forma que nos é mais natural e inata, para mim as metáforas e o simbolismo, para ela a construção da imagem. Da mesma forma, outras pessoas não escolhem a sua sexualidade, ou o género com que se identificam, ou o corpo ambíguo com que nascem, no entanto, são forçadas a negar aquilo que são, para caberem nos modelos socialmente disponíveis, masculino ou feminino. Às vezes, mais vezes do que pensamos, a expressão verdadeira daquilo que somos passa pela vivência da nossa sexualidade, ou do nosso género e não cabe numa letra, M, F, ou LGBT. Às vezes, mais vezes do que pensamos, ter a liberdade de não ter escolha, mas de apenas ser quem realmente somos é o único caminho para sermos felizes, não só a nível individual, mas, essencialmente, a nível colectivo. |
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