O Despertar de Alice
por Margarida Farinha
Era uma vez… Ou talvez não… hoje era mais um dia em que Alice não conseguia escrever nenhuma frase. Faltava-lhe a inspiração. Todos os dias se sentava em frente ao computador e escrevia “Era uma vez” mas nada saía. Raramente começava assim os seu contos para crianças, mas já tentara de tudo e estas eram as únicas palavras que lhe saiam: “Era uma vez… ou talvez não…” Alice via o tempo a passar e nenhuma palavra lhe saia. Menos um dia. Sabia que desta vez não iria conseguir cumprir com o prazo para entregar o livro.
Alice tinha 36 anos e escrevia contos para crianças à vinte anos. Tudo começou na sua adolescência quando a sua professora de português a incentivou a publicar as suas histórias no jornal da escola. Alice tinha um talento natural para contar histórias e logo teve lugar cativo no jornal da escola. Todos os meses sai uma história de Alice. Sonhava viajar pelo mundo, conhecer outras gentes e outras culturas. Esse sonho acabou por a levar a tirar o curso de Jornalismo. Queria viajar pelo mundo fora e contar as histórias de outras gentes e outras culturas. Já estava na faculdade quando o seu pai decidiu juntar todas as suas pequenas histórias e enviá-las para várias editoras. Um dia ao chegar a casa, vinda faculdade, Alice tinha um contrato para a publicação das suas histórias como contos para crianças. Aceitou pensando que assim conseguiria ter um fundo para viajar. O sucesso foi tanto que logo teve uma proposta da editora para escrever mais contos. Acabou por suspender a matrícula na faculdade e dedicou-se a escrever. Os seus livros para crianças eram um sucesso. E permitia-lhe rendimento para ter uma vida confortável. Tinha o seu apartamento na cidade, alguns amigos e sempre que podia viajava. O que não acontecia muito frequentemente devido ao prazos apertados da editora. Até hoje, Alice nunca tinha falhado o prazo de entrega de um livro. Sempre que a inspiração lhe falhava encontrava refúgio na quinta da família. Um lugar tranquilo no meio da natureza. A casa era antiga e modesta mas trazia a Alice todo o mistério dos contos de fadas. Alice encontrava histórias por baixo de cada pedra, por trás de cada árvore, os pássaros traziam-lhe as palavras. Bastava fechar os olhos e entrava nesse mundo mágico. Mas pela primeira vez na sua vida este local encontrava-se no mais profundo silêncio. Tudo o que conseguia encontrar era Silêncio. Não conseguia escrever. Sabia que no dia seguinte teria de ir à cidade e telefonar para a sua editora e dizer que não iria cumprir o prazo de entrega e nem sabia se conseguiria escrever o livro. Sabia, também, que isto implicava um rombo financeiro. Numa tentativa desesperada sentou-se em frente ao computador e escreveu “Era uma vez…”. Esperava que as palavras ecoassem e nada, só silencio. Rendeu-se, nada havia a fazer. O melhor seria aproveitar o resto do dia e ganhar forças para lidar com tudo o que viria. Pois, neste momento, nem sequer sabia se conseguia voltar a escrever. Arranjou um farnel, água, calçou as suas botas de caminhada e lançou-se no caminho. Iria andar pela floresta, algo que adorava fazer desde criança. Conhecia aquela floresta como a palma das suas mãos. Depois de umas boas horas de caminhada o tempo começou a escurecer e dava sinais que ia chover. Duvidava que tivesse tempo de voltar para casa e começou á procura de um abrigo. Sabia onde poderia encontrar uma gruta para a abrigar da chuva e começou a caminhar rapidamente. Já chovia fortemente quando entrou na gruta. A chuva intensificou-se e não havia sinal de ir abrandar. Estava a escurecer e o frio começava a sentir-se. Chovia demasiado para se aventurar a seguir caminho. O melhor seria juntar a folhagem seca do chão e fazer uma cama na parte mais abrigada da gruta. Teria de passar ali a noite. Juntou toda a folhagem seca que conseguiu encontrar e dirigiu-se para o fundo da caverna, de repente apercebeu-se que lá bem no fundo havia uma luz muito ténue. Aproximou-se devagar para ver de onde vinha e apercebeu-se que havia uma abertura na rocha que dava para uma gruta. Conseguia ouvir o murmúrio de uma queda de água, como que chamando o seu nome. Estava apreensiva, pois, não se lembrava de existir ali uma gruta, mas decidiu descer para encontrar um abrigo mais resguardado. Era bem melhor enfrentar o desconhecido gruta adentro do que enfrentar a chuva. Sabia que não havia animais selvagens na zona, talvez encontrasse uma cobra ou outra. Alice desceu e desceu, o caminho era estreito e longo. No princípio parecia fácil mas à medida que descia tornava-se mais irregular e inclinado. Por vezes Alice tinha que se agarrar às paredes. Já se estava a imaginar a cair e rebolar por ali abaixo. Uma voz dentro dela dizia “porque te tinhas de aventurar neste caminho”. Bem neste momento não fazia sentido voltar para trás e continuou a descer. Começou a ouvir o som dá água muito mais claro e um crepitar. Acentuou o passo até chegar à entrada para uma ampla gruta. Espreitou e havia uma claridade enorme que vinha de uma fogueira situada no lado direito da gruta. Mal a conseguia ver, mas reconheceu o som da madeira a estalar por entre a labaredas. Mesmo de frente para ela havia um lago enorme que se estendia para lá da escuridão da gruta. Simplesmente parecia não ter fim. Questionava-se como nunca tinha descoberto esta gruta antes, mas estava claro que havia alguém dentro da gruta. Será que também tinha sido apanhada pela chuva. Decidiu entrar cautelosamente na gruta e perceber quem estava ali. Ansiava pelo calor do fogo desesperadamente. Ao entrar na gruta não viu ninguém, pé ante pé aproximou-se do fogo, estava gelada. O fogo era tão intenso que não conseguia olhar para além dele. Sentou-se e aqueceu-se. Preparava-se para dormir quando ouviu um barulho para lá do fogo. Levantou-se e preparava-se para fugir quando ouviu chamar o seu nome… Alice não fujas… Que raio, como sabiam o seu nome. Quando se voltou deu de caras com um lobo enorme. Estaria a sonhar, estaria acordada, não sabia… estava paralisada de medo. O seu corpo não obedecia às suas ordens… A voz continuou… — Alice, que procura? Uma voz que parecia a de Alice respondeu, mas parecia que os seus lábios não mexiam: — Um abrigo quente para passar a noite. Fui apanhada pela chuva e não posso voltar para casa assim. Está uma tempestade lá fora. — Aqui poderás encontrar o que procuras mas… E eis que o lobo diminuiu de tamanho até ficar um monte de peles no chão. Uma mulher de pele branca e cabelos negros emergiu debaixo das peles e disse: — Mas terás de percorrer o caminho até esse abrigo quente. Lembra-te, Alice, que és tu que escolhes o que levar na mochila que carregas e como tal és tu que escolhes a dificuldade do teu caminho. Acredita… Em frente de Alice toda a caverna se iluminou e um caminho de brasas se acendeu até uma confortável cama de peles. Havia água e comida mas não havia forma de evitar o caminho de brasas. Estava nesse preciso momento a questionar-se se as suas botas de caminhada aguentariam o calor da brasas quando sentiu o frio da terra nos pés. Que se passava, onde estavam as suas botas. Agora tinha a certeza que estava a sonhar, beliscou-se mas nada aconteceu e tudo parecia tão real. Preparava-se para voltar atrás, quando as seguintes palavras ecoaram na sua cabeça “tu escolhes o que levar na tua mochila, tu escolhes a dificuldade do teu caminho”. Ainda tinha a sua mochila às costas, sentia o seu peso… já nem se lembrava do que lá tinha colocado. Será que tinha algo que a ajudasse a atravessar as brasas? Tirou a mochila e quando a abriu encontrou um sem número de coisas que neste momento não lhe eram de nenhuma utilidade. Livros, lápis, pedras que tinha apanhado, a garrafa de água vazia, um canivete, mais pedras, lenços, um estojo de lápis de colorir, papel… Não havia nada que lhe pudesse ser útil. Que fazer? Descalça não conseguia subir o caminho de volta para a superfície. Ou ficava ali ou fazia o caminho… mas a ideia de avançar dava-lhe um nó no estômago e um dor no peito… sentia medo. As lágrimas escorriam-lhe pela face… — Acredita, Alice, Acredita – ecoava na caverna Estava cansada e não tinha mais forças. Desejava aquela cama, sentir o calor daquelas peles na sua. Era tudo o que queria nesse momento. As Palavras “ és tu que escolhes o que levar na mochila que carregas e como tal és tu que escolhes a dificuldade do teu caminho” voltaram a ecoar na sua mente. — Ok, então vou sem nada – gritou Alice Tirou a sua roupa e caminhou para as brasas. Sentia o calor, que bem que sabia. Inspirou e deixou-se levar pela brisa quente que circulava. Sentia-se a flutuar, havia um doce aroma de flores no ar que a deixava inebriada. Não sabia se caminhava ou se era levada… sentia um prazer enorme e todo o seu corpo vibrava. Já não se sentia assim havia muito tempo. Lembrou-se da Alice que sonhava percorrer o mundo. A Alice sonhadora. Apercebeu-se de quanta saudade sentia dela. Sentiu-se cair na cama de peles. Eram tão suaves que sentia todo o seu corpo acariciado. Assim adormeceu… Alice acordou com os raios de sol no seu rosto. Levou algum tempo para se lembrar do que se tinha passado. Estava na gruta… ah foi um sonho exclamou ela… ria-se e pensava quanta imaginação. Quando se apercebeu que estava descalça, os seus pés estavam sujos de cinza e tinha a camisa vestida ao contrário. Da mochila nem havia vestígios. Será que o que tinha acontecido teria sido mais que um sonho? Felizmente conseguiu encontrar as botas, num canto da caverna, e certificou-se que a chave de casa ainda estava no bolso das calças. A verdade é que Alice ainda sentia aquela sensação de prazer no corpo. Como se tivesse feito amor com ela a noite inteira. Isso despertou uma parte da Alice que tinha ficado Adormecida todos estes anos. |