Era uma vez uma rapariga morena, de faces rosadas que bordava num bastidor junto à janela de sua casa. A lareira estava acesa. Nela ardia um grosso cepo e um fogo intenso saía sob a forma de fumo pela chaminé da casa de pedra. Lá fora caíam os primeiros raios de sol da manhã, iluminando o lago espelhado, onde nadavam sete cisnes brancos, esguios e esbeltos.
Nada naquele quadro bucólico faria crêr que aquele era um dia especial. Atracaria no porto da aldeia um navio vindo de terras distantes, que havia dias se encontrava fundeado ao largo da costa.
Estela pousou o trabalho que lhe ocupava as mãos. Levantou-se, dirigiu-se à mãe envelhecida que se encontrava junto ao fogão e beijou-lhe a face; deixou recados ao pai que trabalhava no campo e saiu de casa, tomando o caminho junto ao rio, que ia desembocar na aldeia sob o olhar atento do seu cão, habitual companheiro de aventuras, a quem fez festas ao sair.
Era raro descer até à aldeia. Já tinha deixado a escola, agora só ia em dias de festa ou para fazer algum recado. Mas aquele era um dia especial. Não eram todos os dias em que um navio daquela envergadura chegava à aldeia.
Pelo caminho, via os camponeses, homens e mulheres, amanhando a terra, atarefados, sob o sol que entretanto começava a aquecer; via também os peixes que habitavam no rio que serpenteava junto à estrada de terra batida e, ao longe, as searas que se dobravam à passagem do vento.
A aldeia estava no seu ritmo habitual, indiferente à sua passagem. A padeira amassava o pão que iria cozer, estaladiço, no forno de lenha. O sacristão, velho, mas decidido, tocava o sino da igreja. O professor, hirto e sizudo, dava aula na escola para meninos ora atentos, ora distraídos pelo pouco que se passava na rua. As mulheres dos pescadores remendavam as redes de pesca junto à doca e alguns gatos alimentavam-se dos restos de alguma pescaria ou esticavam-se ao sol.
O navio estava à sua frente, majestoso e imponente. Na amurada, alguns marinheiros tisnados pelo sol do mar alto falavam uma língua incompreensível que nunca tinha ouvido.
Por impulso, resolveu subir ao navio, através da estreita prancha colocada para o efeito. Não gostava de alturas, mas decidiu não olhar para baixo enquanto a atravessava. Conseguiu.
Do navio, via a aldeia. Os gatos comiam os restos de alguma pescaria ou esticavam-se ao sol. As mulheres dos pescadores remendavam as redes de pesca junto à doca. O professor, hirto e sizudo, dava aula na escola para meninos ora atentos, ora distraídos pelo que se passava na rua. O sacristão, velho, mas decidido, tovaca o sino da igreja. A padeira amassava o pão que iria cozer, estaladiço, no forno de lenha.
Ao longe, as searas curvavam-se à passagem do vento. Nas margens do rio que serpenteava junto à estrada, via os camponeses, homens e mulheres amanhando a terra; o cão junto à casa de seus pais e o lago espelhado com setes graciosos cisnes que aí nadavam.
Estava com medo de ser vista pelos marinheiros que tinha visto no convés, mas não viu viva-alma quando olhou em seu redor. A costa estava livre e desimpedida.
Decidiu descer para as cabines. À sua frente, um largo corredor, comprido, escuro, com portas de um lado e outro, a maior parte delas fechadas, algumas entreabertas.
A medo, rodou a maçaneta da primeira porta à sua direita. No centro do quarto iluminado, uma rapariga de aspecto angelical dançava, etérea, uma música vinda sabe Deus de onde. Compenetrada, não deu por si. Estela chamou-a, gesticulou, colocou-se à sua frente e nada. A dançarina continuava impávida e serena a dançar. Estela achou toda aquela situação muito estranha e saiu daquele quarto, entrando no seguinte.
No centro deste novo quarto encontrava-se um músico tocando flauta, rodeado de animais: pássaros, coelhos, esquilos, raposas, lobos, veados, cães, e gatos, tudo na mais plena harmonia como que enfeitiçados pelas notas que saíam daquela flauta. Estela gritou, gesticulou, sem conseguir despertar a atenção do músico. Cansou-se e procurou uma outra porta, pela qual entrou.
Nessa, encontrou um escritor sentado à secretária, escrevendo, igualmente compenetrado como as personagens anteriores. Da sua pena, saíam histórias fantásticas que surgiam reais à sua frente. Cada vez mais assustada, sem perceber nada do que se passava naquele navio, saiu a correr do quarto, pelo corredor fora, mas quanto mais corria, mais o corredor se alongava. Sem perceber o que se passava, encostou-se a uma porta, que pensava encontrar-se fechada. No entanto, a porta abriu-se com o seu peso, fazendo-a cair para dentro do aposento. O que a viu deixou-a ainda mais apavorada.
Ao fundo, sentado num trono, um ser com ar assustador e disforme. De cada lado, uma gárgula empunhando uma maça cheia de picos.
- Quem és tu?, disse a criatura com voz de trovão.
A garganta seca quase que a impediu de falar:
- Chamo-me Estela.
- Quem te convidou a entrar neste navio, que é o meu reino encantado?
-Ninguém, eu só queria...
- Tu nada, interrompeu a criatura. – Agora ficarás para sempre aqui prisioneira!
- Prisioneira, mas... e começou a chorar, lembrando-se do que deixara para trás, a aldeia, os campos de trigo, os cisnes do lago, o seu cão, os pais, a casa onde vivia.
- A menos que consigas abrir esta arca. Todas as pessoas que viste nos outros quartos tentaram abrir a arca, em vão, e ficaram em meu poder, para meu próprio divertimento e deleite.
- E o que tem a arca?
- Isso logo verás quando a abrires. Mas poderás levar o seu conteúdo se a conseguires abrir!
Ao dizer esta frase, o trono, a criatura, as gárgulas com as maças desapareceram, ficando só, apenas com a arca diante de si.
Era uma arca grande, toda em madrepérola e com fechadura em prata. Tentou levantar a tampa, sem conseguir. Fez mais força, mas não conseguiu. Sempre que fazia mais força, mais a arca se fechava.
- É preciso uma chave, pensou. Olhou para todos os lados, procurou nos móveis, por cima deles, dentro das gavetas, portas e portinhos. Sem qualquer resultado. Cada vez mais assustada pelo que podia acontecer e por ficar presa para sempre, recomeçou a chorar. Porém, depressa percebeu que o choro nada resolvia e, com o cansaço que a invadia, acabou por adormecer.
- Estela, Estela, minha filha! Uma voz suave e confiante despertara-a do seu sono, que não sabia quanto tempo durara. Era a sua fada-madrinha que surgira em seu socorro.
– Minha filha, para abrires a fechadura da arca, só tens de usar a chave do teu coração. E, com um movimento da varinha de condão, fez aparecer uma agulha, igual àquela que Estela usava para os seus bordados e desapareceu.
- Uma agulha? O que faço eu com uma agulha? Se ainda fosse uma chave... Mas, pensou, também não custa tentar e se a fada o diz... Pegou na agulha, que flutuava na sua frente e olhou para a arca. Nada daquilo lhe fazia sentido. Como abrir uma fechadura com uma agulha? Todavia, as palavras “Usa a chave do teu coração” proferidas pela sua fada-madrinha só lhe ressoavam dentro da sua cabeça.
Decidida, olhou então com mais atenção para a fechadura, procurando algum pormenor que lhe poderia ter escapado anteriormente. Reparou que à volta do buraco da mesma, onde se colocava a chave que a abria, se encontrava um círculo com o alfabeto inscrito na prata, cada letra do tamanho exacto do diâmetro da agulha. Espetou-a e carregou na letra E primeiro. Depois, no S, no T, no E e novamente no L, mas sem qualquer resultado. Mas quando carregou no A, ouviu um estalido. O seu coração bateu mais depressa e foi com o bater do coração que percebeu quais as letras que seguiriam ao A: M, O e R. Amor era a chave para abrir a fechadura em prata da arca de madrepérola. Quando o clique final se ouviu, conseguiu abrir a arca e uma luz intensa saiu lá de dentro, encandeando a rapariga, que tombou para trás, estupefacta.
Tudo à sua volta mudou. O navio transformou-se em palácio; a dançarina num conjunto de damas; o músico numa orquestra; os animais em nobres e aristocratas; as gárgulas em Rei e rainha e a criatura disforme num jovem e atraente príncipe. Estela havia-os libertado de um velho feitiço que lhes havia sido lançado. E apenas com a palavra AMOR.